sábado, 21 de julho de 2007

Um vexame histórico [Parte 1]

Fac-símile da primeira página da reportagem que a Manchete publicou em 24 de julho de 1976

Há 31 anos, em julho de 1976, Florianópolis emplacou manchetes dos principais jornais nacionais, por conta de um episódio que entrou para o folclore cultural brasileiro. Foi a lendária prisão do cantor Gilberto Gil, num quarto do hotel Ivoram [hoje Centro Sul], na Avenida Hercílio Luz, coração da cidade. Gil foi em cana porque portava um cigarro de maconha para consumo próprio. Vivíamos o auge da ditadura militar. Poucos meses antes, o operário Manoel Fiel Filho tinha sido assassinado no cárcere do Doi-Codi, em São Paulo. Mesmo destino infeliz que teve o jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975. No clima do arbítrio, qualquer delegado de polícia ou inspetor de quarteirão se sentia o máximo – tinha sempre de arranjar um motivo para revelar sua “autoridade” e intimidar a população de modo geral. No caso de Gil, a intenção clara do autor da prisão – o mítico delegado Elói Gonçalves de Azevedo – era atingir a juventude local. Aquela juventude sobre a qual escrevemos outro dia, quando publicamos aqui umas partes do suplemento Brazil, Capital Desterro, editado pelo jornal O Estado em 14 de maio do mesmo ano.
Mas deixemos falar a História. Remexendo nos meus arquivos, encontrei a revista Manchete de 24 de julho de 1976, com o relato fiel dos patéticos acontecimentos. É uma crônica bem-acabada sobre Florianópolis da época, destacando alguns personagens importantes da cidade. Texto de Tarlis Batista, fotos de Paulo Dutra [um mito do jornalismo catarinense], Rivaldo Souza [tragicamente falecido aos 34 anos, em 1989] e Paulo Leite. A reprodução, daqui para baixo, é integral, dividida em quatro partes, para facilitar a leitura.

GILBERTO GIL
“Eu não sabia que era crime fumar maconha”


A intenção do delegado Elói Gonçalves de Azevedo não era a de prender os Doces Bárbaros – Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Betânia – por porte ilegal de maconha. Quem o policial queria ver atrás das grades era o jornalista Beto Studieck (sic – a grafia correta é Stodieck), do jornal O Estado, de Florianópolis. Antes do horário estipulado pela lei para efetuar a invasão de um domicílio suspeito, ele entrou no apartamento do jornalista e nada encontrou. Para não perder a viagem, reuniu a equipe e rumou para o Hotel Ivoram, onde não só os Doces Bárbaros estavam hospedados, como os seus técnicos, músicos, empresários e acompanhantes. Após se identificar na gerência e conseguir a relação dos hóspedes, o delegado e a equipe passaram à ação. O primeiro apartamento vistoriado foi o 306, de Gilberto Gil.
– “Nós batemos à porta. Quando o cantor respondeu, falamos que era da gerência – conta o delegado Elói. – Gil veio atender, perguntou qual era o assunto. Me identifiquei e revelei as razões que me levavam a fazer uma revista no apartamento. Sem se perturbar, o cantor abriu a porta, mandando que entrássemos. Procedemos ao exame dos armários e roupas. Quando encontramos na carteira o cigarro de maconha, perguntamos se ele era o dono da carteira e do cigarro. Sem perder a calma, Gil respondeu afirmativamente. Disse ainda que sabia ser ilegal o porte e a venda, mas a maconha era para o seu uso. Dei-lhe voz de prisão. Fomos revistar outros quartos. O seguinte foi o de Gal Costa. Ela não estava. A moça que ali encontramos disse que ela havia dormido no apartamento de Maria Betânia. Seguimos para o quarto de Caetano Veloso. Percebendo que éramos da polícia, Caetano começou a gritar por socorro. Quando se acalmou, pediu desculpas, dizendo que ainda estava sonhando. Examinamos o seu quarto e encontramos um vidro de Valium. Ele disse que o mesmo tinha sido comprado com uma receita médica, o que mais tarde foi comprovado.”
No apartamento 406 encontraram Maria Betânia e Gal, que também estavam dormindo e receberam os policiais vestindo trajes bastante sumários. Maria Betânia ficou tranqüila, enquanto Gal reclamava da maneira como haviam invadido o apartamento.
Ali encontraram Pó de Pemba e outros materiais usados por Betânia no culto da sua religião. Na dúvida, recolheram tudo para exame de laboratório. No apartamento 308 encontraram não só alguns cigarros (baseados), como uma boa quantidade de maconha prensada, que “daria para mais uns 30 ou mais cigarros bem feitos”. Os suspeitos e flagrados foram colocados no apartamento de Caetano Veloso. No final, só Gilberto Gil, Chiquinho e Djalma foram conduzidos até a delegacia para serem autuados.
[Pergunta do repórter] – Foi pura intuição que o levou até o apartamento dos artistas ou havia alguma denúncia?
– “Tudo começou dois dias antes – respondeu o Dr. Elói. – Encontrando um informante na Praça XV de Novembro, indaguei sobre a apresentação dos artistas em Curitiba. Disse-me ter tido a impressão que eles haviam se apresentado completamente chapados, ou seja, dominados pelo tóxico. Li, não sei onde, há algum tempo, que Maria Betânia e Gal Costa haviam tido problemas com a polícia por porte ilegal de maconha. Reuni a minha equipe e ficamos de sobreaviso.”
Na manhã de terça-feira começou a repressão. A polícia preferiu dirigir suas atenções para os que residiam em Florianópolis e já vinham sendo observados. Foi o caso do jornalista. A visita de Caetano na tarde de terça-feira a um médico seu amigo (que já esteve envolvido num flagrante de porte de maconha) foi a razão para colocar não só o cantor como também o médico sob suspeição. Nada conseguiram apurar a respeito de Caetano, Betânia e Gal. Gilberto Gil, separado do grupo, esteve numa comunidade hippie na Barra da Lagoa. Na opinião dos policiais, ali aconteceu uma sessão de vaposeiros, que só não foi flagrada por ter sido realizada num local bastante devassado, permitindo a identificação de um dos comissários pelos hippies. “Desfizemos o grupo e resolvemos voltar na manhã seguinte, tentar os flagrantes”.

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