sábado, 24 de novembro de 2007

Santa Catarina

Se o prezado leitor nasceu em Santa Catarina (ou vive no Estado há um tempo razoável), por certo já deve ter lido inúmeros textos impecáveis sobre a nossa rica História e as nossas qualidades humanas, culturais, ambientais e geográficas.
Mas aposto que nunca leu o que vai publicado a seguir, de autoria do governador Jorge Lacerda, morto num acidente aéreo ocorrido em 16 de junho de 1958.
Apesar de passados mais de 50 anos, desde que Lacerda escreveu esta jóia, há no texto uma indisfarçável poesia e uma confessada paixão por nosso Estado. Talvez até por não ter nascido aqui (filho de gregos, era natural de Paranaguá, no Paraná), o político e intelectual tivesse uma visão totalmente diferente, perspicaz e criativa sobre Santa Catarina.
[Leia uma síntese da biografia do governador no post anterior – role a página para baixo –, onde está explicado também de onde tirei este texto].
Mas deixemos de conversa. Vamos ao que ele escreveu:

Santa Catarina, a diferente

"O que surpreende o viajante, quando percorre o território catarinense, são os acidentes geográficos. Quem vive na Capital da República e ouve falar em Santa Catarina tem a impressão de que aqui a natureza é aquela 'fêmea mansa', de que nos fala Gilberto Freyre, a respeito de outras regiões do país, que se agachava sem resistência sob as botas petulantes do colonizador.
Ocorre, entretanto, o contrário. A natureza parece ter convocado as montanhas numa verdadeira insurreição telúrica, para conter a marcha do homem. O chão catarinense foi sacudido por uma convulsão de serras. Para dominá-lo, foi mister a obstinação heróica daquelas raças que trouxeram do Velho Continente a decisão da luta e a paixão da conquista.
Os próprios rios, em Santa Catarina, ao contrário do que observava Pascal, não são aqueles caminhos que andam e nos levam para onde desejamos ir. Não colaboraram, como em outras regiões brasileiras, no trabalho de penetração do homem no interland.
Daí a luta, verdadeiramente titânica, travada pelo lavrador catarinense contra o meio físico. Quantas lavouras, da raiz das montanhas ascendem até o cume, vencendo escarpas quase verticais como a submeterem o lavrador a verdadeiro alpinismo agrário...
Não obstante tudo isso, Santa Catarina soube plantar, entre as águas atlânticas e as barrancas do Peperiguaçu, uma civilização peculiar na vida brasileira, caracterizada sobretudo pelo seu aspecto multiforme – mosaico cultural na paisagem nacional –, composto pelas mãos vigorosas de seus pioneiros, de várias procedências e de diferentes raças, como o Dr. Blumenau, a maior figura de colonizador que o Brasil conheceu. Formado em filosofia por uma universidade alemã, aqui fundou uma sociedade cujos estatutos vedavam a existência de escravos e consideravam brasileiros todos aqueles que participassem da organização. Dom Pedro II entusiasmou-se com os planos do colonizador, tornou-se seu amigo e o amparou nos seus empreendimentos. Com Blumenau veio o Dr. Fritz Müller, considerado por Darwin o "Príncipe dos Observadores", isto há mais ou menos um século. Fritz Müller era socialista. Andava de tamancos e, às vezes, descalço, por certo para mostrar o rigor das suas convicções.
O município de Blumenau marcou, com as suas características, o Vale do Itajaí, onde encontramos enfeitando a paisagem tropical o casario talhado em linhas européias.
Mais acima, na carta geográfica do Estado, temos Joinville, grande centro industrial do Norte, colonizada por alemães e escandinavos. Nasceu, todavia, sob o paraninfo de princesa brasileira e príncipe francês: a Princesa Dona Francisca, filha de Dom Pedro I, Imperador do Brasil, e o Príncipe de Joinville, filho de Luís Filipe I, Rei dos Franceses. Apesar das singularidades típicas do processo de desenvolvimento que modernamente impulsiona a vida do Estado, é perfeita a integração de cidades eminentemente industrializadas, como Joinville, Blumenau e Brusque, no quadro rural. O progresso não expulsou a natureza, que continua participando da vida urbana, compondo-lhe a moldura e proporcionando ao homem os elementos para sua subsistência.

"Várias ilhas de cultura, cada uma com as suas peculiaridades"

No século XVIII, os catarinenses chamavam o Rio Grande do Sul de "continente", como se o território de Santa Catarina se resumisse à ilha em que está hoje localizada Florianópolis, a antiga Nossa Senhora do Desterro. Do ponto de vista econômico e cultural, a visão que se oferece ao observador é a de um arquipélago: várias ilhas de cultura, cada uma com as suas peculiaridades. Na região do planalto, em que os costumes se assemelham muito aos do Rio Grande do Sul, predomina a indústria pastoril. O catarinense do interior em pouco ou nada difere do gaúcho. E o habitante das zonas coloniais se identifica perfeitamente com o colono do Rio Grande. Tais afinidades se explicam pela circunstância de Santa Catarina ter, por intermédio dos bravos lagunenses, fundado o Rio Grande; pela similitude das características que marcam a paisagem física e humana; pelo fato de a população do Oeste constituir-se de 80% de gaúchos. Na soma de todos esses fatores e dos imponderáveis psicológicos, reafirmados no curso da História, os dois Estados sulinos representam verdadeira unidade econômica e sentimental. Só nos faltam as planuras e coxilhas gaúchas, em que o homem alonga a vista até a barra do horizonte; o planalto catarinense, porém, é pontilhado de pinheiros, que se esparramam aos milhares pelos campos, ou se adensam em capões às margens dos rios e no topo das rechãs.
Na Serra Geral, bem defronte ao mar, ergue-se, a 1.200 metros, quase a cavaleiro do oceano, a cidade de São Joaquim, uma das mais altas do Brasil. Ali a natureza se manifesta num espraiamento de contrastes, cada qual mais impressionante aos olhos do brasileiro de outras procedências: no verão colhem-se frutas européias da melhor qualidade, e, no inverno, a paisagem cobre-se de neve.
Já no Oeste, onde florescem cidades que há pouco eram simples povoados, predomina a colonização teuto-ítalo-brasileira. É aí que ondulam os trigais de Santa Catarina. Na lavoura, que é a atividade principal, trabalham o homem e a mulher, segundo os bons costumes rurais europeus.
Ao norte do Estado, vamos encontrar as grandes plantações de erva-mate, cuja indústria experimenta verdadeira ressurreição econômica. Nessa região é que se desenrolou, nos começos do século, alastrando-se, depois, entre os rios Uruguai e Iguaçu, a 'Guerra dos Fanáticos', também conhecida por 'Campanha do Contestado', e que assumiu proporções maiores do que a de Canudos, quer na extensão do campo de operações, quer no movimento de massas.

“Aqui a realidade é que precede a fábula”

No Sul, temos o Vale do Tubarão, cujas terras, segundo a opinião de um agrônomo americano, convertidas em tabletes, poderiam ser exportadas como fertilizantes, tal a riqueza do seu húmus. É a região do vinho e também do carvão.
Recortado de praias, angras e enseadas, o litoral acolheu outrora o colonizador açoriano, cujo descendente, não afeiçoado aos trabalhos da terra, vive quase que exclusivamente da pesca. No inverno é famosa a pesca da tainha em arrastão.
Fato curioso é o que se observa nas praias da Laguna: os pescadores, de pés fincados na areia e de tarrafas em punho, pescam as tainhas que são tangidas pelos botos até a praia. E os botos (pacíficos mamíferos do mar), que corcoveiam à flor das ondas, renovam inúmeras vezes o assédio marítimo, como perdigueiros amestrados a serviço dos pescadores.
O surpreendente é que os pescadores se familiarizaram de tal forma com esses animais, que acabaram batizando-os até com nomes de gente. O 'Fandango' (porque meio espalhafatoso), o 'Cego' (porque nada meio zonzo), o 'Chinelo' (por ser um boto meio descansado), e o 'Miranda', já falecido, que era o mais estimado de todos.
Esta é a história de uma singular sociedade, constituída de botos e homens. Não é mito, nem fábula. 'No começo era a fábula', dizia Valéry.Na verdade, em tal caso, o mito é superado pela realidade; é a própria lenda avant la lettre; dir-se-ia que modestos pescadores corrigem Valéry: 'Aqui a realidade é que precede à fábula. Os mitos vêm depois. A fábula, entre nós, perdeu a imaginação. A fantasia está na própria vida'".

2 comentários:

Gus disse...

Damião, parabéns pelo post. O que o catarinense sabe de Jorge Lacerda? Quase nada. Na política, assim como no futebol, a rivalidade não permite que se tenha uma visão real (?) dos seus protagonistas. As exceções são os jornalistas: sabem, mas não podem publicar para não ferir interesses dos poderosos de plantão, sob pena de perderem o seu ganha-pão. Em Florianópolis, não é diferente. O que sabemos de ex-governadores? Somente aquilo filtrado pelos interesses de muitos. Na minha terra há uma escola chamada "Gama Rosa". Ele deve ter sido um personagem importante da nossa história. Nem os professores, muito menos os alunos, sabem quem ele foi. Nada sabemos. Isto interessa a muita gente.

Abraços

Emerson Carvalho disse...

Olá!

Sou estudante do curso de Letras e bolsista de um projeto de iniciação científica da PUC-MG, no qual trabalho com textos literários, ou ao menos que se configurem por meio de elementos estéticos de natureza literária, que foram publicados em suportes que não o livro, mais especificamente na revista Manchete em uma seção especial no ano de 1957. O belíssimo texto de Jorge Lacerda, "Santa Catarina a diferente", na íntegra em seu blog, foi também publicado na revista Manchete no ano de 1957, porém ele não é original dela. Se o texto é anterior ou posterior ao ano de 1957, você poderia me enviar as seguintes informações: o ano de publicação, nome do livro, editora e página em que o texto está inserido? Se você puder gentilmente fazer isso por mim, ficarei encarecidamente grato e irá me ajudar bastante com minha pesquisa e a escrita de meu artigo.

Segue meu email: emersoncassiomaia@msn.com

Um grande abraço,

Emerson Carvalho.